1. Introdução
No dia em que ocorreu o desaparecimento físico do Amigo Celso Barbi Filho – que teve a ousadia (reveladora, para mim, da humildade e grandeza de seu espírito) de submeter à minha apreciação, com antecedência, sua tese de doutorado –, deveria ele, à noite, na Faculdade de Direito “Milton Campos”, proferir palestra versando “A Dissolução Parcial da Sociedade”, e o autor destas palavras, em seguida, deveria comentar sua dissertação.Razões outras, porém, de uma hierarquia muito superior – que, um dia, com certeza, chegaremos a entender e a compreender –, determinaram outros caminhos.
Assim, ao se fazer, para mim, a oportunidade de participar dessa homenagem a esse Amigo, tratei, logo, de optar pela “deliberação majoritária”, porque sobre ela, em várias oportunidades, tivemos a oportunidade de intercambiar. Não vai aqui, portanto, tenho convicção, nenhuma novidade. Afinal, há muito foi desfeito, desmascarado mesmo – em que pese ter vigorado no seio das Juntas Comerciais, paralelamente e por um bom tempo, a máxima de que “não poderia ser arquivada alteração contratual a que faltasse a assinatura de algum sócio” –, o pensamento de que, para a eficácia das deliberações sociais, mormente nas sociedades cum intuitu personæ, o consentimento unânime dos sócios era vital, imprescindível. Aqui, então, na verdade, apenas e tão-somente, a reprodução de alguns de nossos intercâmbios sobre o tema e, ao mesmo tempo, a homenagem a um Amigo; a homenagem a um ser que aprendi a admirar e respeitar; a homenagem de quem, com ele, aprendeu muitas coisas.
2. Situando o Tema
Em que pese os termos do artigo 331 de nossa vetusta Lei n. 556, de 25 de junho de 1850 – Código Comercial Brasileiro –, houve quem defendesse, com afinco, que a unanimidade, nas sociedades de pessoas, era a regra; que, sem ela, não teria qualquer valor a deliberação social adotada.Tanto teve força esse pensamento que, ao vir à luz a Lei n. 4.726, de 13 de julho de 1965, que dispunha sobre os serviços do Registro do Comércio e atividades afins, nela ficou estabelecido, em seu artigo 38, inciso V, que não poderiam ser arquivados
“os contratos sociais a que faltasse a assinatura de algum sócio, salvo no caso em que fosse contratualmente permitida deliberação de sócios que representassem a maioria do capital social”.
Tinha início, assim, o processo de postergação do antigo, salutar e democrático “princípio da deliberação majoritária”, vez que as Juntas Comerciais, infelizmente – e talvez por não terem entendido bem o pensamento do legislador –, começaram a fazer valer, “a ferro e fogo”, pode-se dizer, uma nova ordem.
O que faltou, à época, parece-me, foi pensar um pouco mais a respeito. Por quê? Porque o preceito, na verdade, tinha por objetivo consagrar a deliberação majoritária; não o de alijá-la do processo. Só que o redator da norma, parece-me, não foi feliz, ao materializar seu pensamento.
Senão, vejamos: qualquer contrato, para ser válido, requer o consentimento das partes e, pois, não poderia mesmo faltar, nele, a assinatura de algum sócio.
E como era impossível – porque se referia a um ato constitutivo – a aplicação da ressalva consignada na parte final da norma, ela só poderia ser entendida em consonância com o disposto no Código Comercial, na Lei das Sociedades Por Quotas e na Lei das Sociedades Por Ações, que estabeleciam e estabelecem a vigência da deliberação majoritária.
Consequentemente, se assim se fizesse, ela não passaria de uma confirmação de que vigorava, em regra, nas deliberações sociais, o “princípio da maioria”.
Mas o assunto gerou tanta polêmica que, ao regulamentar a mencionada Lei n. 4.726/65, o Decreto n. 57.651, de 19 de janeiro de 1966, querendo por “uma pá de cal” sobre a questão, introduziu a hipótese da alteração do contrato, que não estava prevista na lei, piorando, assim, a situação. É que seu artigo 71, inciso V, inovando (coisa que não compete a um decreto, por não ser lei formal e material ao mesmo tempo), estabeleceu que não poderiam ser arquivados
“os contratos sociais a que faltasse a assinatura de algum sócio. Nos casos de alteração de contrato, só seria permitida essa falta caso contratualmente permitida deliberação de sócios que representassem a maioria do capital”.
Por outras palavras, foi invertida a ordem das coisas. Agora, só seria permitida a “deliberação majoritária” se ela fosse expressamente prevista no contrato social.
No entanto, no Código Comercial, de 1850, relembre-se, a regra era e é a seguinte:
“Art. 331 – A maioria dos sócios não tem faculdade de entrar em operações diversas das convencionadas no contrato sem o consentimento unânime de todos os sócios. Nos mais casos todos os negócios sociais serão decididos pelo voto da maioria, computado pela forma prescrita no artigo 486.”
“Art. 486 – Nas parcerias ou sociedades de navios, o parecer da maioria no valor dos interesses prevalece contra o da minoria nos mesmos interesses, ainda que esta seja representada pelo maior número de sócios e aquela por um só. Os votos computam-se na proporção dos quinhões; o menor quinhão será contado por um voto; no caso de empate decidirá a sorte, se os sócios não preferirem cometer a decisão a um terceiro.”
E a Lei n. 3.708, de 1919, das Sociedades por Quotas, de Responsabilidade Limitada, sentenciava e sentencia:
“Art. 15 – Assiste aos sócios que divergirem da alteração do contrato social a faculdade de se retirarem da sociedade, obtendo o reembolso da quantia correspondente ao seu capital, na proporção do último balanço aprovado. Ficam, porém, obrigados às prestações correspondentes às quotas respectivas, na parte em que essas prestações forem necessárias para pagamento das obrigações contraídas, até a data do registro definitivo da modificação do estatuto social.”
Vale dizer: “a deliberação majoritária é a regra”[1]; não o consentimento unânime. E maioria de capital; não de pessoas.
No entanto, um simples decreto – pasmem! – estava a quebrá-la. Que decreto? O citado Decreto n. 57.651/66, vez que a Lei n. 4.726/65, na verdade, não chegou a fazê-lo.
E, o que é pior, por via administrativa, já que as Juntas Comerciais, apesar da posição contrária de alguns de seus técnicos, seguiram, rigorosamente – e por orientação do Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC) –, o pensamento de que a unanimidade era a regra, muito embora, desde 11.12.1973, assim já tivesse se manifestado o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário n. 76.710:
“Sociedade por quotas – alteração do contrato social por deliberação da maioria (Decreto n. 3.708/19, art. 15) – Registro de contrato de que não consta a assinatura de sócio dissidente – Legitimidade – Inexistência de ofensa ao art. 38, V, da Lei n. 4.726, de 1965, que não revogou a norma do art. 15. Do Decreto n. 3.708.”[2]
E o retorno à ordem, às origens, só começou a ser possível com o surgimento da Lei n. 6.939, de 9 de setembro de 1981, que, além de instituir o regime sumário de registro e arquivamento no âmbito do Registro do Comércio, hoje Registro Público de Empresas Mercantis, promoveu uma evolução naquele pensamento, ao estabelecer:
Art. 6º - O cancelamento do registro ou arquivamento somente poderá ser declarado: I – na alteração contratual, se o instrumento não estiver assinado por todos os sócios, salvo: a) quando o contrato ou estatuto permitir a deliberação de sócios que representem a maioria do capital social; b) no caso de exclusão de sócio do cargo de gerente, por deliberação da maioria do capital social; c) nas demais hipóteses de exclusão de sócio previstas em lei.”
Mas a situação só foi realmente resolvida com o advento da Lei n. 8.934, de 18 de novembro de 1994, que restabeleceu, com toda força e nesses termos, o “princípio da maioria”:
Art. 35 – Não podem ser arquivados: ............................................................................................................. VI – a alteração contratual, por deliberação majoritária do capital social, quando houver cláusula restritiva; ...........................................................................................................;
Por outras palavras, não havendo – em ato anterior, registre-se – cláusula restritiva, a deliberação pela maioria se impunha.
Completando-a, a regra do artigo 54 do Decreto n. 1.800, de 30 de janeiro de 1996, in verbis:
“a deliberação majoritária, não havendo cláusula restritiva, abrange também as hipóteses de destituição da gerência, exclusão de sócio, dissolução e extinção de sociedade”.
A unanimidade hoje, portanto, é exceção!
3. “Princípio da Maioria”: Inaplicabilidade
Se a unanimidade é exceção, de perguntar: quando terá ela aplicação? Ou, por outros termos, quando não será possível aplicar-se o “princípio da maioria”?Pelo exposto, será exigido o consentimento unânime, quando o contrato social consolidado assim estipular ou, a teor do disposto no Código Comercial Brasileiro, quando:
a) se pretender que a sociedade entre em operações diversas – altere seu objeto social – das convencionadas em seu contrato (art. 331);
b) um sócio quiser aplicar os fundos ou efeitos da sociedade para negócio ou uso de conta própria ou de terceiro (art. 333); e
c) um sócio resolver ceder a terceiro, não sócio, a parte que tiver na sociedade ou mesmo fazer-se substituir no exercício das funções que nela exercer (art. 334).
Considerando, porém, que essas regras são dispositivas, os sócios, por consentimento unânime, podem alterá-las, no próprio contrato social ou em posterior alteração contratual. Então, se no ato constitutivo estiver previsto que todas as deliberações sociais – incluídas as de que cogitam os arts. 331, parte final, e 334, do Código Comercial – serão tomadas pela maioria, o princípio só não seria aplicado, penso, na hipótese do art. 333, também do Código Comercial, por envolver apropriação indébita e até mesmo por força do disposto no art. 1.380 do Código Civil.
Silente, porém, o contrato social consolidado, prevalece o“princípio da maioria”, observadas as restrições, há pouco anotadas, dos arts. 331, 333 e 334, do Código Comercial.
Mas, atenção: que fique bem claro que se essas regras forem modificadas via alteração contratual, esta, para ser válida, deverá conter a assinatura de todos os sócios, mesmo porque o art. 35, inciso I, da mencionada Lei n. 8.934/94, impede o arquivamento, pelas Juntas Comerciais, dos “documentos que não obedecerem às prescrições legais ou regulamentares ou que contiverem matéria contrária aos bons costumes ou à ordem pública, bem como os que colidirem com o respectivo estatuto ou contrato não modificado anteriormente”.
Há, porém, uma outra hipótese de inaplicabilidade do “princípio da maioria”, que não é muito comentada: a que envolve a teoria do usufruto.
A questão a ser respondida é a seguinte: doada parte das quotas de um sócio em determinada sociedade e conservando o sócio-doador o usufruto da parte entregue ao donatário, pode ele (usufrutário), depois, para obter a maioria, somar às suas as quotas dadas em usufruto e, assim, com ou sem o beneplácito de outro(s) sócio(s) e sem o consentimento do(s) donatário(s), introduzir modificações no contrato social em vigor?
Depende. Ficando estabelecido que no usufruto está inserido o direito de voto, a resposta será afirmativa. Mas, se o direito de voto tiver ficado com o donatário ou se não tiver sido regulado no ato de constituição do gravame, ou em ato posterior, a resposta há que ser negativa, à vista da própria teoria do usufruto e, também, do disposto no art. 114 da Lei n. 6.404, de 15 de dezembro de 1976, que é aplicável às sociedades por quotas, de responsabilidade limitada, por força do art. 18 da Lei n. 3.708, de 10 de janeiro de 1919.
Eis os termos do mencionado art. 114 da Lei n. 6.404/76:
“O direito de voto da ação gravada com usufruto, se não for regulado no ato de constituição do gravame, somente poderá ser exercido mediante prévio acordo entre o proprietário e o usufrutuário.”
É que, ao receber a doação, o donatário se torna sócio da sociedade ou, se já o era, tem sua participação aumentada e, por conseguinte, perde o sócio-doador (usufrutário) a propriedade sobre aquela quota-parte. Não tem mais, sobre ela, o “ius abutendi”, significando isso, que “não lhe é lícito alterar a substância da coisa, nem lhe mudar o destino”[3]. Se assim é, utilizar o sócio-doador (usufrutário), sem o consentimento do donatário (novo proprietário das quotas), a parcela doada para com ela obter a maioria e, por esse caminho, introduzir modificações no contrato social em vigor, é alterar a substância da coisa, é retirar do donatário “a condição jurídica de senhor dela”[4].
Só aquela disposição legal, penso, é suficiente para resolver a questão, mas, de qualquer forma, não se pode esquecer que ela só existe porque:
a) ao tratar do tema, o art. 713 do Código Civil deixou claro que “constitui usufruto o direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade”;
b) dois elementos, essenciais, exsurgem do conceito: a substânciae o proveito;
c) não se pode confundir esses dois elementos;
d) na percepção dos frutos reside a essência do usufruto;
e) adotou-se, no Brasil – diferentemente do que ocorre na Argentina e na Espanha, por exemplo, que atribuem ao nu-proprietário, e não ao usufrutuário, o exercício do direito de voto –, a teoria da impossibilidade de um (donatário nu-proprietário) e outro (doador usufrutuário) exercer esse direito, na falta de um acordo a respeito.
Via de consequência, doada a quota-parte (mantido, porém, seu usufruto) e se nada foi estipulado no ato de constituição do gravame, o sócio-doador (usufrutuário) terá apenas direito à percepção dos dividendos, dos lucros advindos daquela quota-parte, ficando o resto – incluídos aqui, se for o caso, os chamados “filhotes” dessa quota-parte – com o donatário ou nu-proprietário da quota-parte gravada com o usufruto. Afinal, todos sabem, “accessorio sequitur principale”.
Por outros termos e em síntese, enquanto não houver o acordo previsto no art. 114 da Lei n. 6.404/76, as deliberações sociais, nesse caso, só serão válidas se subscritas por todos os sócios; se houver, afinal, o consentimento unânime, eis que, sem quotas doadas e sem a definição de quem detém o direito de voto, ninguém deterá a maioria do capital social.
Afora esses casos, insiste-se, prevalece a “deliberação pela maioria”, razão, pois, do título deste artigo: “a unanimidade é exceção”.
4. Conclusão
Conforme se alertou no limiar deste estudo, nunca se pretendeu, com ele, realizar minuciosa análise de cada uma das particularidades que o tema comporta e, menos ainda, tornar definitivas estas palavras.
O objetivo, ali está expresso, é outro, bem diferente.
Mas, se ainda assim, este trabalho, de uma forma ou de outra, contribuir para a evolução do pensamento de quem tiver a oportunidade de tomar contato com ele, de criticá-lo, ter-se-á cumprido uma outra grande finalidade: nossos intercâmbios, Amigo Celso, não foram vãos. Transcenderam os limites de nós mesmos e estão sendo úteis a pessoas que nem mesmo conhecemos ou chegamos a conhecer. E isso – compartilhar o que chegamos a compreender – é um motivo de grande felicidade! Para Você e para mim.